O quanto você lutaria para preservar um órgão seu? Por incrível que pareça, durante o século XIX, um homem na Itália batalhou muito para preservar o próprio cérebro depois de sua morte.
E o motivo era nobre: ele queria enfrentar a eugenia, uma teoria controversa que visa criar métodos para melhorar geneticamente os seres humanos – o que, no fim das contas, significa sustentar uma ideia sobre a pureza das raças e a superioridade de algumas sobre as outras. Conheça a sua fantástica história em prol da ciência.
O cérebro de Carlo Giacomini
Quem visita o ?Museo di Anatomia Umana Luigi Rolando em Turim, na Itália, pode não perceber no cantinho de uma sala um item discreto: um pequeno órgão marrom preservado dentro de uma cúpula de vidro.
Perto dele, há apenas uma placa de madeira que diz: “não sendo um defensor da cremação nem dos cemitérios, gostaria que meus ossos fossem colocados para descansar no Instituto Anatômico. Gostaria também que meu cérebro fosse preservado com meu método e colocado no Museu com os outros”.
Essas palavras foram registradas no testamento de Carlo Giacomini, um anatomista, neurocientista e diretor de museu que pediu para que seu cérebro e seu esqueleto fossem guardados após a sua morte. Mas não foi apenas isso: Giacomini desenvolveu uma nova técnica que secava o principal órgão do corpo, fazendo com que ele mantivesse suas características.
Ele morreu de um derrame aos 58 anos. Dois dias depois de seu falecimento, o cérebro foi submetido a uma técnica de preservação que consistia no mergulho em uma mistura formada por cloreto de zinco, álcool e glicerina.
Hoje o seu cérebro permanece exposto no mesmo museu, ao lado de outros 800 órgãos preservados da mesma forma. Mas a questão mais importante é: por que ele fez isso?
O trabalho de Giacomini contra a eugenia
O trabalho desenvolvido por Carlo Giacomini acabou fazendo parte de um debate maior. Tudo começou quando ele estava na faculdade de Medicina, e se deparou com uma discussão sobre a frenologia, uma nova linha de pensamento dentro da área que alegava que as características físicas poderiam revelar aspectos internos de um indivíduo.
Segundo essa visão, um criminoso, por exemplo, poderia ser reconhecido pelo formato do seu crânio. Um dos principais expoentes dessa linha foi Cesare Lombroso, que popularizou a teoria ao fundar a Escola Positivista de Criminologia na Itália. Ele acreditava que a morfologia do cérebro era responsável pelo comportamento violento, e que a disposição do crime era herdada a partir da própria biologia.
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Essas ideias foram amplamente divulgadas no século XVIII, e acabavam endossando estereótipos raciais e sociais: as pessoas de raças discriminadas e as mais pobres seriam mais propensas a cometer crimes. “Tais teorias confirmavam a superioridade da inteligência masculina branca e a legitimação do poder colonial”, explicou Cristiane Augusto, pesquisadora e especialista em Direito Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista ao Atlas Obscura.
Ocorre que Giacomini participava dos mesmos círculos científicos que Lombroso. Como o cientista tinha dificuldade de estudar os cérebros de pessoas que vinham normalmente das prisões, Giacomini acabou ajudando a desenvolver um novo método de secagem do órgão para poder aproveitá-lo melhor nos estudos.
Ele então realizou testes com cloreto de zinco, glicerina, ácido nítrico ou bicromato de potássio. Aos poucos, Giacomini foi chegando em uma fórmula mais eficiente. “As preparações feitas com o método de secagem não apenas deram maior consistência ao espécime anatômico, mas, mais importante, eliminaram deformações, tornando as observações mais confiáveis”, diz Giacomo Giacobini, atual diretor científico do museu em Turim.
Giacomini acabou preparando mais de mil cérebros usando seus novos métodos, mas também seguiu estudando o órgão. Só que as conclusões de seus estudos foram decepcionando Lombroso, já que acabou afirmando o contrário do que o famoso médico acreditava.
“Não descobrimos que os cérebros de desajustados sociais têm um tipo específico de conformação, mas sim as mesmas variações, nas mesmas proporções, que outros cérebros, e não podemos de forma alguma relacionar essas variações às suas ações malévolas”, declarou.
Ou seja, ele acabou concluindo que não havia diferenças notáveis entre os cérebros daqueles que cometeram crimes e daqueles que não cometeram. Só que as suas visões nunca foram reconhecidas publicamente, e os defensores de Lombroso acabaram apelidando Giacomini de um “teólogo e indivíduo medroso”.
Mesmo assim, depois da Segunda Guerra Mundial, as ideias de Giacomini foram se popularizando à medida que as visões eugenistas de Lombroso iam sendo rejeitadas, até por conta de sua associação com os ideais nazistas, que pregavam a pureza da raça ariana.
O trabalho de Giacomini, portanto, restou na história como um precursor da neurociência – e ele mesmo é mencionado até hoje como um nome muito importante (embora pouco lembrado) dentro da medicina.
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